Jovem casal algarvio de arquitetos a viver na Nova Zelândia adquiriu o histórico edifício para preservar a traça original. Ao quilómetro 71,8 da EN124, na junção com a EN2, estrada com cada vez mais interesse turístico, será um ponto de interesse digno de paragem.
Mário Luz e Liliana Sequeira, ambos arquitetos e naturais do concelho de Loulé, vivem desde 2010 em Christchurch, Nova Zelândia. Foi mesmo assim, a meio mundo de distância que viram a oportunidade de comprar uma casa no Algarve, mas não uma qualquer. Em finais de 2017 decidiram adquirir a casa de cantoneiros do Barranco do Velho, na freguesia de Salir, concelho de Loulé, um edifício carismático e há muito sem uso. «Isto era património da extinta Junta Autónoma de Estadas (JAE), passou para as mãos do governo e foi posto à venda», lembra o novo proprietário.
Mas mais do que uma oportunidade para fazer um bom negócio imobiliário, a motivação e o interesse prendem-se com uma questão afetiva, de memórias de infância. «O meu pai é de Santa Cruz, uma freguesia de Almodôvar. Quando íamos visitar a família passávamos muitas vezes por aqui. Desde criança que queria ter uma casinha destas», recorda Liliana.
O azul vivo dos azulejos da Cerâmica Lusitania (Lisboa) ainda reluz ao sol. Ameixial, Almodôvar, Castro Verde e Lisboa têm as distâncias bem identificadas. No interior ainda há alguns artefatos e documentos, tal como o anúncio do concurso público para a venda de um lote de alfarrobas e amêndoas, no valor de três mil escudos (15 euros), marcada para 7 de junho de 1982, ofício do Ministério do Equipamento Social e do Ambiente. Ou a requisição, escrita à mão em outubro de 1990, solicitando picaretas, enxadas rasas, pás de bico e forquilhas.
«Como somos ambos arquitetos, no momento em que vemos uma casa que tem imenso valor histórico e cultural à venda, pensar que podemos perder a oportunidade de fazermos nós a sua reabilitação, com o devido cuidado e sensibilidade» é um desafio irresistível. «Quem é que nos diz que alguém fará isso? Ou que irá derrubar tudo? Ou que ficará encerrada a decair, ad eternum?» ao exemplo de tantas outras congéneres pelo país.
«Esta casa está intacta. Todos os valores que nela existiam mantêm-se. Conseguem-se ler. Poderá nalguns casos ser necessário reconstruir alguma coisa, de acordo com as técnicas tradicionais que aqui foram aplicadas», explica Mário Luz, embora dito desta forma, até pareça tarefa simples.
«Foi preciso algum esforço para encontrarmos um carpinteiro disposto a refazer as portas e as janelas. Para muitos foi visto como algo que dá muito trabalho e pouco lucro. Mas encontrámos um que ainda insiste em manter a tradição e a qualidade do trabalho em madeira. Continua a replicar hoje as coisas tal como eram feitas antigamente, sem quebrar essa linha de continuidade na técnica de marcenaria e de construção», conta.
«Temos de combater as mentalidades. Estas janelas foram pintadas em 1937. Claro, agora estão podres. Mas ainda assim, sem qualquer manutenção, ainda cumprem a função. Não estão assim tão más para algo com 81 anos», considera a arquiteta. «Até os vidros originais queremos manter. Têm defeitos, mas também caráter, vida e história».
Futuro em aberto
«As nossas famílias são do concelho de Loulé. Quando fomos para a Nova Zelândia, deixámos cá as nossas coisas, a nossa biblioteca acumulada ao longo dos últimos 15 anos. Sentimos que gostávamos de ter um espaço nosso, independentemente de esta ser a casa para quando voltarmos um dia no futuro», diz Liliana, algarvia de Loulé. «Bem, para já o plano é fazer as obras de reabilitação tal como se faziam antigamente. Vamos juntando dinheiro e avançando, sem recorrer a empréstimos ao banco. Penso que será um processo demorado, e vai levar algum tempo até decidirmos qual o destino a dar à casa. Até estar completamente recuperada, se calhar, já a vida nos ditou as opções. Ninguém sabe», riem, embora não excluam a hipótese de vir a criar um Alojamento Local em plena EN2, estrada que está cada vez mais na moda, e até há quem lhe chame a Route 66 portuguesa.
Um mundo de cores diferentes
A viver na Nova Zelândia, «comprámos a casa à distância e vínhamos com essa expetativa de gostar muito ou nada. Gostámos muito. O meu pai estava desejoso de pintar os portões da frente, para sinalizar que há um novo dono, que é posse de alguém que vai cuidar dela. Tivemos que escolher uma cor lá no outro lado do mundo. Fomos a uma loja de tintas em Christchurch, e escolhemos algo que pensámos ser sangue de boi, parecida à original. Mas os processos de cor são muito diferentes na Europa. O meu pai teve que fazer uma pesquisa louca para encontrar a tinta certa que tínhamos pedido».
«Cultura de oportunismo»
Mário e Liliana dizem que os estrangeiros qualificados são bem-vindos na Nova Zelândia. «Nunca nos sentimos olhados como emigrantes. Somos cerca de 40 portugueses, juntamo-nos na Páscoa, Natal e no dia de Portugal. As saudades são mais da família e do povo em geral, da maneira de ser algarvia, das conversas de cafés, mais do que do país. Aliás, quando encontras a burocracia, perdes logo as saudades de Portugal», descreve Liliana. «É um país com 4 milhões de habitantes, fazes um telefonema e resolves o teu assunto, sem papéis. Falas com a pessoa que está no topo das decisões e resolves os problemas. É tudo mais igualitário, não há a escada social. É uma sociedade mais horizontal. Significa que a pessoa que está a ser servida está no mesmo plano da que serve. Não há subjugação, nem pequenos poderes», acrescenta Mário. Em Portugal, «a nossa sociedade diz-nos que deverás estar sempre à defesa, seja lá com quem lidares, porque há uma cultura de oportunismo e de trapalhice. Às vezes, até nem envolve maldade, tem só a ver com oportunismo. E penso que se percebe numa sociedade desigual, que tenhas de aproveitar as poucas oportunidades que tens para conseguir alguma coisa. Lá, não é assim. Como é tudo mais igualitário, ninguém vê necessidade de enganar o próximo».
Turismo pode salvar património
Contactada pelo «barlavento», Maria Isabel Silva, autora da dissertação da tese de mestrado «As casas dos cantoneiros do Algarve» (2011) (volumes I e II), pela Universidade Aberta, manifestou-se satisfeita com o destino do imóvel no Barranco do Velho. Algarvia de Monchique, foi naquela vila que se interessou por este património. «As casas dos cantoneiros das estradas foram construídas, em Portugal, desde a segunda metade do século XIX, para habitação daqueles operários. Porém, a maioria das que hoje se conhecem devem-se ao Estado Novo, que lhes conferiu as características que as identificam e que as tornaram parte do património rodoviário português. Apesar de ser possível identificar algumas tipologias nestes edifícios, o seu aspeto é, de uma forma geral, heterogéneo. O Algarve constitui uma exceção, pois as casas dos cantoneiros desta região são as únicas a apresentar uma uniformidade quase absoluta entre si, o que torna o conjunto único em todo o país», escreveu na dissertação. A de Barranco do Velho distingue-se por ter sido a Sede da Secção de Conservação no distrito de Faro.
«O trabalho dos cantoneiros, ou seja, a conservação das estradas, não deixou marcas visíveis. Além dos instrumentos de trabalho e de documentos escritos e fotográficos acessíveis somente a uma minoria, apenas restaram algumas. Este tipo de estruturas tende a desaparecer, se não for considerado com valor. No contexto algarvio atual, a par com outras soluções, isto tem de passar pelo turismo, o maior motor da economia da região. Pode ser a solução para as preservar e, ao mesmo tempo, elas podem dar um contributo para a revitalização das áreas rurais em que se situam», se já não for tarde demais.
O valor da História
A Nova Zelândia, onde os arquitetos Mário e Liliana vivem e trabalham, «é um país com uma história, muito curta e portanto, qualquer coisa com 30 a 50 anos, tem imenso valor. Uma igreja com 60 anos é vista pelas pessoas como algo muito importante para a história do bairro. Toda a gente quer preservar aquilo. Aqui em Portugal, porque a nossa história é longa, nós só damos importância histórica a coisas que são extremamente velhas. Isso faz com que seja fácil alguém chegar aqui a esta casa de cantoneiros no Barranco do Velho, por exemplo, e mandar tudo abaixo, porque é feita em taipa, é pequena e não tem importância. Aliás, tal como tem sido feito no Algarve. Mas na realidade, se não preservares esta história recente, não vais ter história daqui por 100 ou 200 anos», conclui Mário Luz.
Fonte: barlavento.pt